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Das implicações Penais aos sujeitos contaminadores do COVID-19 ou por sua ignorância.

Artigo elaborado por Marluz Lacerda Dalledone e Eduardo Gasparin G. Pereira.

A sociedade mundial vive atualmente uma época de aflição, desconforto, angústia e sofrimento, decorrente de uma ameaça invisível que atenta contra um dos nossos bens mais vitais, a saúde.


Evidentemente estamos nos referindo ao novo coronavírus (COVID-19), identificado inicialmente em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan – China, e que rapidamente atingiu os países asiáticos e europeus, alcançando ao longo deste primeiro trimestre de 2020, os países das Américas.


A cura desta pandemia ainda não existe e sua principal característica é o alto grau de transmissão. Os países pioneiros infectados descobriram que a contaminação pelo vírus procederia por meio de tosse e espirros, além de sua propagação com o toque da pessoa em um objeto contaminado e na sequência em seus adjetos da face; assim, o contato e gestos carinhosos como abraços e beijos a amigos e familiares, ou um simples aperto de mão, foram restringidos pelo medo do outro e pelo outro.


E agora, infelizmente é a vez do Brasil.


Considerando a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional da OMS, de 30.jan.2020, o Governo Federal editou a Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre as medidas a serem adotadas para enfrentamento de emergência de saúde pública de importância internacional.


As principais medidas a evitar a propagação do novo coronavírus consistem no isolamento, isto é, a separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros (art. 2º, inc. I), e a quarentena, restringindo as atividades ou separando de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação (art. 2º, inc. II).


Ou seja, a medida mais eficiente, até o momento, segundo declarações dos órgãos de saúde mundiais e dos Chefes de Estado, é o indivíduo permanecer em sua residência, restringindo o seu contato físico com o “mundo externo”.


Acontece que, por mais incisiva as recomendações dos órgãos competentes a respeito da implementação do isolamento e da quarentena, sendo aderida a causa pela sociedade de um modo geral, contando com campanhas em redes sociais, apelos nos telejornais, mensagens de médicos, atletas, famosos e autoridades; parte da população brasileira insiste em não acatar as diretrizes de enfrentamento a esta pandemia que atinge o nosso país.


Não se ignora a prejudicialidade dos impactos econômicos causados com a interrupção das atividades mercantis, abalando desde grandes empresas até pequenos comerciantes, no entanto, diferentemente dos pronunciamentos do Presidente da República e do proprietário da rede milionária de hambúrgueres, a questão econômica, por mais drástica que for, jamais, poderá sobrepor o direito à saúde, e principalmente ao direito a vida.


Justamente pelo descumprimento das medidas impostas pelo Governo Federal afrontar os aludidos direitos fundamentais, a conduta do agente infrator poderá ensejar na sua responsabilização civil, administrativa e penal, nos termos do art. 3º da Portaria Interministerial nº. 5, de 17 de março de 2020.


Esta situação, imaginada anteriormente somente por roteiristas de cinema, desvela e traz ao uso tipos penais pouco praticados em nosso dia-a-dia forense. O presente artigo objetiva abordar exclusivamente as implicações penais dos contaminados e as decorrentes da desobediência das medidas de prevenção da propagação do novo coronavírus, razão pelo qual, nos abstemos de tratar a respeito das consequências legais nas demais esferas do Direito e demais crimes possivelmente praticados por outros agentes.


Dentre os milhares de tipos penais existente no ordenamento jurídico brasileiro, positivados tanto no Código Penal como nas legislações extravagantes, de plano se destacam 05 (cinco) que se amoldam a situação ora ponderada, sendo eles os artigos 121, 129, §§ 2º e 3º, 131, 267 e 268.


A pratica de homicídio (artigo 121 do Código Penal) através do novo coronavírus é possível, mas muito pouco provável que ocorra, já que para ser caracterizado este crime teríamos que ter um infectado, com vontade dirigida à ceifar a vida de uma pessoa e esta vítima deve já estar debilitada e com comorbidades suficientes à saber que seu contagio resultaria em morte.


O crime de lesão corporal simples, cometida através do novo coronavírus, não é possível de ser cometido, uma vez que um infectado que deliberadamente contamina terceiro, com a vontade dirigida de transmitir-lhe o COVID-19, o que consequentemente vai causar-lhe lesão corporal, incorre no tipo penal previsto no artigo 131 do Código Penal.


Quando o resultado de uma contaminação deliberada de moléstia grave for um dos previstos no parágrafo 1º do artigo 129 do Código Penal, lesão corporal grave, há divergência na doutrina se é o mero exaurimento do crime contágio de moléstia grave ou incorreria no crime de lesão corporal grave. Seguimos a corrente de que se trata de mero exaurimento do crime de perigo de contágio de moléstia greve, artigo 131 do Código Penal, principalmente por ter a pena pouco abaixo do crime de lesão corporal grave, desta forma mais benéfica ao réu.


Já uma prática idônea para transmitir o vírus COVID-19, que resulte em alguma das possibilidades previstas no parágrafo 2º do artigo 129 do Código Penal, ou ainda que o resultado seja a morte, parágrafo 3º do mesmo artigo, responde o autor por estes crimes e não pelo 131 do Código Penal. O resultado morte em um caso destes caracteriza o típico caso de preterdolo.


O crime previsto no artigo 131 encontra-se no Capítulo III do Código Penal, intitulado ‘Da Periclitação da Vida e da Saúde’, se tratando de crime de perigo, diferente dos crimes de dano, onde exige-se uma efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, para sua caracterização basta o perigo ou a mera possibilidade de ocorrer o dano.


Ensina a melhor doutrina que estes tipos penais, na realidade tratam-se de crimes de dano, com dolo de dano, mas são tão graves que o legislador resolveu penalizar a conduta delitiva independentemente da efetiva ocorrência da transmissão.


Está previsto no artigo 131 do Código Penal o tipo nomeado de Perigo de Contágio de Moléstia Grave, desta forma, só poderá ocorrer quando da contaminação de “moléstia grave”. Esta condição não pode decorrer de outra fonte senão a analise médica científica, desta forma, considerando os inúmeros trabalhos científicos publicados por todo o planeta, apontando o alto grau de lesividade do vírus COVID-19, concluímos que o novo coronavírus é moléstia grave.


Este tipo penal criminaliza a conduta do sujeito portador de uma doença grave, no nosso caso COVID-19, sabedor desta condição, com consciência e vontade de disseminar o vírus pratica qualquer ato que exponha terceiro a contaminação. A pena prevista é de 01 (um) a 04 (quatro) anos.


O exemplo cristalino que podemos citar, é a pessoa diagnosticada com o novo coronavírus, entrar em um ônibus lotado com o objetivo de espalhar a doença que lhe acomete. Indiferente é o fato de efetivamente contaminar ou não. Como já vimos, dependendo do resultado da eventual contaminação, pode o autor responder por crime mais grave.


Por fim, o CAPÍTULO III do TÍTULO VIII do Código Penal é destinado aos crimes contra a saúde pública, encontrando-se dois tipos penais aplicáveis ao quadro do COVID-19.


O crime de epidemia, prescrito no art. 267 do Código Penal, é o mais severo dentre os aqui trabalhados, considerando a previsão dos patamares mínimo e máximo de sua pena, dez e quinze anos de reclusão, respectivamente, com o aumento desta em dobro, se o fato resultar morte (§1º), admitindo ainda, a modalidade culposa (§2º).


A conduta delitiva é caracterizada quando o agente causar, ou seja, der causa, promover, originar epidemia – “doença infecciosa e contagiosa que se espalha ou ataca com rapidez um grande número de pessoas, numa determinada região”[i]– mediante a propagação, não descrevendo o legislador a forma específica de sua propagação, sendo admitido portanto, qualquer meio, de germes patogênicos, organismos, microscópios ou não, capazes de gerar doenças em um hospedeiro.


Para a incidência do tipo penal é exigido o contágio a um grande número de pessoas, portanto, o agente infectado não pratica o crime de epidemia ao propagar os germes patogênicos em um lugar fechado com um número ínfimo de indivíduos, muito menos em um local já previamente infectado, representando assim, o crime impossível.


Por outro lado, a propagação deve ocorrer em um lugar livre do contágio, que permita afetar uma escala significativa de pessoas, e por se tratar de crime doloso (que admite a modalidade culposa), a conduta do agente deve estar revestida do elemento subjetivo dolo, ora entendido como a vontade consciente de produzir epidemia com a propagação de germes patogênicos.


A forma culposa do tipo penal, descrita em seu parágrafo segundo, ocorre quando o agente de maneira imprudente, negligente ou imperita, não observa o dever de cuidado objetivo exigido pelas circunstâncias, prevendo a realização do resultado.


A exemplificar a caracterização do crime de epidemia, em sua modalidade culposa, Guilherme de Souza Nucci[ii] disserta em seu artigo, a possibilidade do agente gripado, sem os sintomas do novo coronavírus, mas em tempos de COVID-19, contagiar terceiros:


Se o crime pode ser cometido com dolo ou culpa, vale exemplificar. Informado da existência do coronavírus, alguém, gripado, de maneira imprudente ou negligente, contagia terceiros. Esse agente não tem os sintomas típicos do coronavírus, mas, em razão da gripe, em época de COVID-19, não deveria se expor em lugar público; afinal, a sua gripe pode, em tese, ser o início da contaminação pelo coronavírus.


Para o doutrinador, a configuração do crime de epidemia é raro e difícil de ser comprovado, eis que para a sua caracterização é necessário a comprovação da geração da epidemia, paralelamente a visível comprovação do potencial dano à saúde pública.


Já o crime de infração de medida sanitária preventiva (art. 268), trata-se de delito de menor potencial lesivo, com previsão da pena de detenção, de um mês a um ano, e multa, podendo ser aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro (parágrafo único).


É praticado quando o agente infringe, ou seja, descumpre, viola, quebra, determinação do poder público, tratando-se este elemento de norma penal em branco, necessitando de outra a complementá-la, mas interpretada como “materializadas por meio de leis, decretos, regulamentos, portarias, emanados de autoridade competente”[iii], destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa, devendo portanto, a ordem do poder público versar sobre a inserção, ingresso ou ao alastramento, e disseminação da doença contagiosa.


Podemos exemplificar a caracterização do delito de infração de medida sanitária preventiva em um caso concreto ocorrido no Município de Curitiba/PR, em que um homem (24), organizou um evento, por meio da rede social Facebook, denominado “Lotar O Largo, Pra Pegar Corona e Eliminar A Humanidade”[iv]. O título do evento é autoexplicativo.


Este inconsequente indivíduo - não havendo notícias que estaria infectado, razão pelo seu enquadramento em tal disposição legal -, teria organizado uma reunião em um dos pontos turísticos da Capital Paranaense, infringindo a determinação do poder público, destinada a impedir a introdução e a propagação do COVID-19, especialmente a recomendação da suspensão de eventos privados com público acima de 50 (cinquenta) pessoas, pelo Governo do Estado do Paraná.


O evento apenas não foi realizado diante da atuação da Polícia Civil, que conseguiu identificar e localizar o seu organizador, e levá-lo a Delegacia de Polícia para prestar esclarecimentos, logo, não se consumando o delito por circunstâncias alheias a vontade do agente.

Não tratam-se de normas penais inovadoras, estando esculpidas no Código Penal desde a sua promulgação, mas dificilmente são debatidas no cotidiano forense, justamente por incidirem principalmente em épocas de endemias, epidemias e pandemias.


A necessidade de legislar, e principalmente de aplicar tais dispositivos legais – como é o caso da maioria vigente no ordenamento jurídico brasileiro – por si só, evidencia-se uma prática desarrazoada em um Estado Democrático de Direito, considerando que a simples conscientização social inibiria a prática destas condutas. É hora de deixar o egocentrismo de lado, e ter empatia com o próximo, principalmente para com as pessoas mais vulneráveis a contaminação e suas consequências.

REFERÊNCIAS

NUCCI, Guilherme de Souza – Direito Penal Parte Especial – Vol. 2, 3ª edição – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal comentado. – 10. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

EPIDEMIA. Dicionário online do Aurélio, 07.abr.2020, Disponível em: https://www.dicio.com.br/epidemia/, acesso em 07.abr.2020.

NUCCI, Guilherme de Souza Nucci. A pandemia do coronavírus e a aplicação da lei penal. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/03/23/pandemia-do-coronavirus-lei-penal/, acesso em 07.abr.2020.

KANIAK, Thais. Polícia identifica homem suspeito de organizar evento para propagar o novo coronavírus, em Curitiba. 18.mar.2020, Disponível em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/03/18/policia-identifica-homem-suspeito-de-organizar-evento-para-propagar-o-novo-coronavirus-em-curitiba.ghtml, acesso em 07.abr.2020.

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